Eram nove da noite e eu já havia pedido uma pizza e duas garrafas de cerveja cara quando uma amiga mandou mensagem.
“Sexta-feira. Vamos na Bambina?”
Eu não tinha planos para além da comida, de um filme ruim e do meu sofrimento crônico e calado. Respondi:
“Vamos. Bambina bambina bambina bambina”.
Apesar de ser conhecida há tempos como Bambina, o nome verdadeiro do bar localizado na rua homônima é Sarreufa Club, um casarão antigo e famoso pela sua sinuca, pelo seu karaokê e pelo seu público de esquisitos. Não há um registro histórico de quando foi a primeira noite de funcionamento da Bambina, mas é provável que isso tenha ocorrido há pelo menos uma década, já que gerações e gerações de estudantes de comunicação da Zona Sul fizeram algumas matérias eletivas naquela sinuca e gerações e gerações de estagiários vomitaram pela primeira vez sua dignidade para fora naqueles banheiros até hoje marcados de imundície e lembranças.
É difícil descrever a Bambina. Um conhecido fã do local uma vez a definiu como “universo paralelo”, o que de certa maneira é correto já que lá dentro as coisas têm um funcionamento próprio que não obedecem muito o razoável. Mas talvez a melhor escolha seja “inferninho”, algo que eu ouvi de um sujeito barbudo na porta de entrada enquanto ele se atracava com uma mulher e dizia, entre beijos e amassos, “puta que pariu, como eu amo este inferninho!”.
A Bambina é composta basicamente de dois ambientes, a sinuca e o karaokê. O primeiro é um salão grande, de pé direito muito baixo, ocupado por mesas de bilhar e adolescentes com seus dezoito anos recém-completos e que estão ali exercendo seu direito de errar. Há ainda o bar e um canto onde ficam sofás, casais adormecidos e uma televisão que faça chuva ou faça sol está passando UFC.
Entre o primeiro e o segundo ambiente fica um corredor não muito estreito que abriga caixas de cerveja cheias e que é iluminado por uma luz verde para a qual eu não consigo pensar nem numa explicação plausível nem numa metáfora bacana. E a descrição do espaço terminaria por aqui não fosse a presença de uma santa embutida na parede, o que eleva a Bambina a um status de lugar sacro. Uma vez uma amiga fez a genealogia da Bambina e descobriu — leu na internet — que aquela casa já abrigou um templo religioso em priscas eras, o que torna toda a ideia de sagrado e profano apenas uma questão de espaço e tempo e não de crença.
Ao fim do corredor há uma porta de açougue e eu gostaria muito de dizer que isso é brincadeira, mas de fato é uma porta de açougue, a forma que a gerência do lugar encontrou para dizer que o que tem adiante é abate, não sei. E passada a porta de açougue — nunca é demais repetir — há o karaokê, onde a noite acontece. Aqui o teto continua baixo, o lugar parece ainda mais apertado e o odor exalado é uma mistura de suor, cloro e equívoco. Para cantar, é preciso pagar a módica quantia de oito reais por canção e todo dia, de segunda à segunda, é certo que vai haver uma fila que ultrapassa as dezenas, tornando o investimento na Bambina mais lucrativo do que aquele CDB que compõe sua reserva de emergência.
Há ainda alguns adendos, como os banheiros sujos, a porta de entrada onde as pessoas pedem Uber e onde os habitués trocam conversa fiada com os seguranças e o pátio externo, lugar imaculado do fumo, da prosa, do descanso, onde a energia ainda não é negativa, o último ponto de não-retorno antes do inferninho começar.
Essa é a Bambina, o pior lugar do mundo que a gente insiste em amar.
O horário de funcionamento oficial da Bambina é de 18h às 04h, mas os caminhos de entrada variam de acordo com o freguês. Se você quer jogar sinuca, o horário de chegada é até às 22h. Se você quer cantar, até às 23h. Se você quer beijar alguém, entre 00h e 01h. Agora, se você precisa de um sentimento ruim no corpo para conseguir começar o seu final de semana, até às 03h vai ter coisa para você lá.
Esse talvez seja o grande predicado da Bambina, o que a torna um pólo gravitacional das almas perdidas de Botafogo na madrugada: ela aceita tudo, sem se importar. Na Bambina tem gente bonita, gente feia, gente esquisita, gente bêbada. Há lugar para a juventude pecar sem medo e há lugar para a rapaziada beirando à senhoridão descansar sua nostalgia e memórias de quando o mundo era mais bacana. Ninguém tem tudo o que quer, mas funciona ainda assim, tal qual uma democracia ruim que ainda é uma democracia — como o Brasil de 1988 a 2013.
O karaokê é o aglutinador óbvio dos públicos e sua pista é assertiva quanto a erros e acertos. Cante “Equalize” e o lugar responde com vozes em uníssono e lembranças de fossas antigas. Cante “Blowin’ in the Wind” e seu desafino ecoará no bar cheio de pessoas entediadas. É uma arte delicada saber o que funciona na Bambina já que as particularidades do lugar se impõe e é natural que novatos errem a mão nas suas escolhas por não entenderem do riscado.
Para quem tem tempo de casa, algumas verdades já são dadas. Eis algumas: Backstreet Boys acalenta o público acima de trinta anos; para a faixa de vinte a vinte cinco anos, o equivalente é “Baby” do Justin Bieber; músicas de Glee fazem sucesso, rocks antigos tendem a ser desprezados; “Construção” não funciona mas sempre é cantada — às vezes mais de uma vez no mesmo dia; CPM 22 tem seus fãs, Legião Urbana causa ojeriza; “Temporal” é hors concours. um dueto formado pelo chefe do karaokê e seu amigo sempre vai cantar “Love Yourself” mudando o verso final; muitos sexos casuais começaram a acontecer com “Bem querer” do Maurício Manieri e muita gente já caiu no flerte do sujeito que canta “Perfume” como se fosse inovação.
Assim funciona a Bambina, nosso refúgio e nosso lar.
A ruína da Bambina aconteceu no dia 28 de maio, um sábado. Nesse dia, a Bambina recebeu a ilustre visita da ex-BBB Rafa Kalimann, que não contente em ir ao local também o divulgou internet afora. Não demorou até que as imagens de sua estadia pululassem os grupos de zapzap, tornando famoso o que nunca deveria ser.
Desde então, a Bambina não foi mais a mesma. Semanas após o incidente blogueira, na minha ida mínima mensal, o lugar parecia ter recebido uma excursão do Leblon. Eram homens altos, fortes, de camiseta preta e barba serrada, ao que uma amiga se referiu como “o ataque dos clones”. Em pouco tempo, diminuiu a quantidade de gente esquisita e aumentou a quantidade de gente igual, de uma beleza padrão, esculpida via nutricionista famosa e séries A/B/C da Bodytech, gente advinda dos cantos mais sombrios do Instagram e que nunca viveu a glória de ser feio.
Daí para a tristeza foi um pulo. Um belo dia alguém cantou sertanejo no karaokê, mas não o sertanejo antigo, da lavra de “Evidências”, daqueles que faziam nossa tarde no finado Domingão do Faustão. Era o sertanejo Novo, jovem, do agronegócio, que vota dezessete, da inexigibilidade de licitação. A pista respondeu se esvaziando, ou melhor, tirando dos estranhos o lugar que eles chamavam de seu.
Essa violência que era estética logo se tornou física e, numa sexta mais pra lá do que pra cá, um homem sacou uma pistola quando o relógio já raiava às quatro horas da manhã para resolver pendências não dialogadas. Desse dia em diante, eu jurei nunca mais pisar na Bambina, agora contaminada pelo que de pior nasce na terra de São Sebastião. Minha amiga persistiu e na vez seguinte beijou um sujeito cujo ofício envolvia a venda de recreativos não-aprovados pela autoridade sanitária do país.
Ali acabava a Bambina, o nosso inferninho particular.
Passava das onze da noite da última sexta-feira e meu joelho doía as boas-vindas da idade quando minha amiga mandou mensagem.
“Estou entediada. Alguma ideia?”
“Bambina?”
“Bora. Bambina bambina bambina bambina”.