Era um dia de semana qualquer e eu estava no Cantinho do Céus afogando as mágoas. Lá estavam os de sempre, bebendo o de sempre, falando o de sempre. Tudo estava como sempre.
Até que chegou o Zé desolado. O nome do Zé não é Zé, nome esse cada vez mais em desuso. Chamo-o de Zé por afinidade, para poupá-lo do constrangimento e porque no botequim só há Zés, Joãos e, quando muito, um Antônio. O botequim é por definição popular e gostamos de fingir que o somos também. Por isso lá não vão Murilos. Os únicos nomes são esses e Adauto, o do garçom.
Mas lá estava o Zé desolado. Chegou, pediu uma dose de tudo que havia de pior, chutou a mesa e, envergonhado, chorou. Copiosamente, como um bebê. Ninguém se atreveu a falar nada que o João — nome falso — perguntou o que havia.
É a morena, disse o Zé. Hoje faria dez anos do nosso primeiro dia. E o coração apertou, uma dor que me consome, parece que vou morrer de tantas saudades.
As respostas foram variadas. “Complicado”, “fica assim não”, “amanhã é um outro dia”, “bebe uma aqui comigo”. Como o sujeito não calava seu sofrimento, nos juntamos no seu embalo, alternando o ouvido amigo ou a bebida paga.
Lá pelas tantas, já cansado do reme-reme, o Adauto falou:
Ouve o Nano que é bom de conselhos.
Os olhos do bar se voltaram a mim, logo eu que frequento aquele lugar buscando o anonimato e por me sentir superior em meio aos trabalhadores braçais. Tentei me esquivar da responsabilidade, mas me compadeci da sua tristeza. Disse:
Bebe, vai para casa, ouve uma música ruim, chora e amanhã tá tudo certo.
O João — não o primeiro, o segundo — discordou. Conselho de merda, não escuta isso, ele disse. Liga pra ela, diz que a ama, que sente saudades.
Parecia um pagode (canção do Belo inclusive) e eu tenho quase certeza que era. O bar concordou. Todos bateram na mesa em uníssono. Me calei e voltei ao meu anonimato. O Zé abriu um sorriso.
Vou fazer isso!, disse. E bebeu as três doses do que tinha na mesa, pagou por nada e se foi noite adentro.
No dia seguinte, ao fim do expediente, eu passei no mercado para comprar um pacote de macarrão, bananas e bicarbonato de sódio para tirar o cheiro de suor das roupas. Do mercado dei um pulo no Cantinho para ver o movimento, saber se alguém tinha morrido ou ganhado no jogo do bicho.
Nada de novo tinha acontecido. O Antônio — cujo nome verdadeiro é muito feio e termina com Neto — me cumprimentou com a cabeça, assim como fez o João, o João, o outro Antônio e o Adauto, que me perguntou se eu queria uma cerveja. Pedi uma long neck para não me estender, até que chegou o Zé outra vez desolado.
O que houve, Zé?, perguntou um dos Joãos.
Ela disse que não quer falar comigo, respondeu o Zé.
Foi uma comoção. “No dia do aniversário de vocês? Que mulher cruel?”, disse o Antônio. “Ela não te merece”, disse o João. “Desce uma rodada aqui, Adauto”, disse o outro João. “Deixa que hoje é por minha conta”, disse ninguém, o que deixou o Adauto particularmente apreensivo dado o volume de bebidas consumidas e a quantidade de “bota na conta” ditos.
Foram muitas horas e muito álcool. Todos estavam absurdados pela recusa da madame em negar o Zé, o nosso Zé, um sujeito que toda mãe gostaria de ter por genro, eles falaram. Já era tarde quando alguém pediu minha opinião. Disse:
Bebe, vai para casa, ouve uma música ruim, chora e amanhã tá tudo certo.
Foram muitas as palavras de baixo calão que eu ouvi. Paguei minha cerveja, peguei minhas sacolas e quando eu já me adiantava rua abaixo, ouvi um deles dizer:
Você vai ligar para ela de novo e colocar isso a limpo. Bota o coração pra fora, homem! Mostra que você é puro sentimento.
Era dia de jogo e a cidade estava quase toda parada. Cheguei no Cantinho com minha blusa do Vasco pronto para trazer mau-agouro para os sem-luz, mas o lugar estava praticamente deserto com exceção dos assíduos. Estranhei o vazio, ao que o Adauto respondeu quando indagado:
Os filhos da puta do bar da frente fizeram uma promoção de dose dupla. Foi todo mundo pra lá.
Por que vocês não fizeram o mesmo?
Porque aqui ninguém paga, ia ser prejuízo em dobro.
Concordei. Pedi um gurjão de frango para acompanhar o jogo. Faltava uma meia hora para o começo quando o Zé apareceu aos prantos.
Agora acabou de vez, ele disse.
Os homens o encararam incrédulos.
Você ligou pra ela? Liguei.
Você disse que a amava? Disse.
Você falou que sentia saudades? Falei.
E ela? Me chamou de tóxico.
Tóxico? Tipo SBT, terrível contra os insetos? Acho que sim.
Como assim tóxico, o que é tóxico? O inseticida
Não, porra, o que é um homem tóxico? Que adjetivo é esse?
Alguém me olhou buscando resposta. Disse:
Tóxico é um termo utilizado para caracterizar relações abusivas, sejam elas românticas ou não. No caso do homem, tóxico seria aquele que entende a masculinidade como definida por violência, sexo, status, agressão, sendo este o ideal cultural, onde a força é tudo e as emoções são uma fraqueza.
E o Zé é tóxico? O homem está se debulhando em lágrimas. Ele é puro sentimento aqui.
O Zé concordou. Entre álcools e gemidos, ele disse que tinha feito de tudo: pedido de conversa, pedido de desculpas, pedido de saudades, pedido de perdão, pedido de amor, mas nada bastou. Ouviu que era tóxico, que a história deles tinham acabado e que ela não tinha mais nada a dizer.
As conclusões foram unânimes: ela era ingrata e sem coração. Os encaminhamentos variaram: metade do time achou que o Zé deveria tentar uma última vez, metade achou que era hora de partir para outra. No tira-teima, perguntaram a minha opinião. Disse:
Bebe. Casa. Música ruim. Choro. Amanhã tá tudo certo.
O próprio Zé me mandou à merda. Fui embora quando o jogo estava 3x0 para os caras, um dia para se esquecer.
O fim de semana tinha sido de chuva, solidão e melancolia. Saí da firma na segunda com ódio no coração e parei no Cantinho para tomar um negocinho e me livrar do sentimento ruim antes de pisar em casa. O lugar estava às moscas, com exceção do Adauto e de um Zé sorumbático. Dei um oi protocolar ao segundo, fiz um sinal inequívoco ao primeiro e me sentei na mesa mais distante. Não deu cinco minutos até que o Zé aparecesse querendo papo.
Falei com a morena mais uma vez, Nano. Agora acabou mesmo.
Que bom, eu pensei. Mas disse: você parece em paz.
Eu estou. Eu entendi o que aconteceu entre a gente e cada um seguiu a sua, na santa graça do Senhor.
Amém, eu pensei. Mas disse: que bom.
Sabe o que ela me falou?
Não, eu pensei. Mas disse: diga lá.
Que eu não tinha bom senso. Quando ela me disse isso, eu entendi tudo. Eu estava sendo inconveniente. Mas agora acabou.
Como eu dizia nada, o Zé me perguntou se eu sabia o que era bom senso. Eu sabia, pensei. Mas disse: não sei.
É o que sobra em mim e falta nos outros. Aprendi isso no Exército quando servi. Nunca mais esqueci.
O Adauto chegou com a cerveja.
Vê mais uma, o Zé falou. Na conta do Nano.
Muito bom!