Dedicado a Maria Varnier e Gustavo Scanferla
Quem se aventura pelas ruas e esquinas de Botafogo não demora a perceber os cantos onde as pessoas perambulam, onde nascem os causos, onde o bairro, meio que por acaso, meio que por descaso, cria seu senso de comunhão, de troca e de vida. São três as regiões assim: o entorno do metrô, no que ficou conhecido cafonamente como Baixo Botafogo; a encruzilhada das ruas Visconde de Caravelas e Capitão Salomão, também conhecida pelo seu principal bar, o Fuska; e a Arnaldo Quintela, uma rua antiga mas que recentemente tomou de assalto o coração e a carteira dos moradores e visitantes.
Há cinco anos, a Arnaldo Quintela era conhecida por concessionárias de automóveis e mecânicas. Hoje, isso tudo continua lá, mas ao lado agora tem um padaria gourmet, um bar de drinks excêntricos, um boteco metido a besta e até uma Igreja Evangélica com nome de livro de autoajuda. Essa nova fase da rua trouxe gente, trouxe agito, trouxe emoções e criou o rolê mais recente a ser feito, o Safari Humano, um tour por todos os bares da área, tomando uma bebida aqui e ali, vendo as pessoas aqui e ali, errando um pouquinho aqui e ali.
Esse conceito de Safari Humano, é preciso dizer, não é meu. Créditos onde eles são devidos. Ele começa com um casal de amigos que gosta de tomar um drink no Quartinho (marco zero do Safari Humano) e que, a partir de uma leve embriaguez, aproveita o entorno para uma caminhada, vendo o movimento, os tipos presentes, o que acontece de novo.
O Chanchada é a primeira casa do trajeto. Por ser recente e antes da Arnaldo Quintela de fato, podemos chamá-lo de marco pré-zero, marco zero zero ou apenas de prólogo. E isso tudo porque ele é o novo queridinho da área, o lugar onde você tem que ir para se sentir inteirado.
Na sociologia existe o conceito de elite, termo utilizado para caracterizar um grupo dentro de uma sociedade que detém ou os meios de produção — caso você seja marxista — ou a autoridade constituída — caso você seja weberiano. Com o desenvolvimento da disciplina, novas tipo de elite foram sendo definidos. Existe a elite intelectual, a elite financeira, a elite política. Mesmo no trabalho existem elites, os chefes, a quem destinamos os desejos de tudo que há de pior.
No Chanchada também existe uma elite, a elite bonita. No bar você encontra as pessoas mais belas que o bairro e seus arredores produziram. Se tem alguém feio geralmente é você, intruso, que usa camiseta de banda, que não ouve as músicas certas, que leu Harry Potter por tempo demais.
Isso faz com que o bar esteja sempre cheio, tanto de pessoas quanto de celebridades que vez outra perambulam por aquelas bandas em horários alternativos. Conseguir um lugar é uma luta e já há pessoas que mesmo com pouco tempo se vangloriam da amizade erguida com algum dos garçons e que facilita o acesso às mesas. Uma vez dentro, o que o Chanchada te propõe é ser um bar da Tijuca feito para a Zona Sul e com preço de Zona Sul. Então a carne assada é cara, a batida é cara e não há, em lugar algum, um quadro do Getúlio Vargas pendurado que te indique que você está em casa.
A próxima parada é o Quartinho, que segundo o folclore local é do mesmo dono do Chanchada — o que diz muito. O Quartinho é um bar conceitual e sua ideia não é apenas vender drinks, mas te proporcionar uma experiência única. No caso aqui, o conceito trabalhado é ser ruim e disfarçar isso de rústico.
Não que as bebidas sejam ruins, longe disso. O que é ruim é o ambiente, que mistura clima de flerte e pegação com mobiliário de jardim de infância decadente. “Que ficar do lado de fora e aproveitar o clima ameno do Rio de Janeiro? Sente-se em uma das nossas carteiras escolares para crianças de 1 a 3 anos. Ótimo para o seu joelho e para a sua lombar!”
Fora isso, o Quartinho também conta com a habitual lotação após às 20h, com a chance não tão remota de esbarrar com conhecidos e com gente que você não gostaria mais de ver e também com um cardápio físico que você precisa pedir uma, duas, três vezes ao garçom, convencendo-o que “não, você não prefere o QR Code” e que “sim, você sabe que o cardápio molha e é vagabundo, que ele veio do material da escola falida que também providenciou as cadeiras, mas que tudo bem, você ainda assim o quer”.
Do Quartinho em diante, a Arnaldo Quintela começa a se desenvolver. Passada a loja de pianos — pois é — você chega na primeira parada, próximo à esquina com a rua Oliveira Fausto. Ali, três bares competem pela sua atenção:
O primeiro, Belisco, é bonito por fora, caro por dentro e não deixa lembranças. Ao seu lado há o Culto, dos mesmos donos do antigo Caverna, uma hamburgueria que habitava Botafogo em tempos mais modestos. O Culto é pequeno, tem drinks e cervejas, alguns sanduíches e uma mini pista de dança. A música que toca tende ao rock de tio, o público que frequenta o lugar tende a ser tio e o que mais impressiona é que de todos os bares do Safari Humano, talvez ele seja o mais adequado para o seu momento de vida. Isso te dá a sensação de estar errado e é isso mesmo, você está. Parte da maturidade envolve aceitar os nossos próprios equívocos. Então ainda que doa ver a juventude em toda sua beleza e irresponsabilidade passar pelo Culto, te olhar com desprezo e seguir em frente em busca de aventuras mais salientes, você sabe que não tem problema. Que este é o tempo deles e que o seu já passou.
Após o Culto, chega-se ao Xepa, o caçula da região, com menos de seis meses de vida. Aqui, mais um conceito: cadeiras de praia na rua. Pelo pouco tempo, ainda é cedo para um veredicto ao Xepa. O que se sabe até o momento é que seu público tende a ser similar ao do Fuska, ou seja, pessoas acima de trinta anos, com espírito jovem e que curtem samba. Sabe-se também que ele enche aos finais de semana, que os garçons (ainda) são gentis e que no banheiro há um pixo que diz “quantas vezes você se traiu para não trair”, um elogio à vida e às relações não-monogâmicas.
Na sequência a gente chega no coração do Safari Humano, onde ele pulsa como quando se está apaixonado. Aqui o movimento é grande dos dois lados da calçada, seja de pessoas indo ao mercado, seja de gente rezando, seja de gente prestes a pecar.
O primeiro local é o Lemô, um bar honesto, que eu gosto e que por isso não tenho nada de crítico, engraçado ou lisonjeiro a falar. Eu gosto e é isso. Quase em frente a ele há o Ceviche RJ, um restaurante honesto, que eu gosto e que por isso não tenho nada de crítico, engraçado ou lisonjeiro a falar. Minto: o nome é ruim. Do que importa dessa parte, sobra o Mãe Joana.
O Mãe Joana não é na Arnaldo Quintela. Na verdade, ele fica na Rodrigo de Britto, uma rua transversal que ostenta uma bandeira gigante do Flamengo, sinal dos melhores tempos. Definir o Mãe Joana não é das tarefas mais simples porque ele já foi uma barbearia em algum momento e até hoje eu acredito que ele ainda o seja em certas manhãs. Além disso, a pandemia propiciou várias encarnações ao Mãe Joana, de modo que a sua experiência com o local depende muito da época, dia e horário em que se foi. Hoje ele tem um caráter mais definido, mas isso já foi mutável, fluído, discutível.
Eu conheci o Mãe Joana na pandemia, quando ele tinha pouca gente, oferecia comida boa, barata e de qualidade e tinha uma música legal tocando ao fundo. Minha melhor memória lá data de um domingo em que a luz de casa acabou e o Mãe Joana se tornou o abrigo. Lá ficamos eu e um amigo, bebendo até altas horas, cerveja atrás de cerveja, até o dono do bar nos dar uma de graça em função de mentiras tristes e sinceras.
De lá pra cá, o lugar mudou, tomou corpo, forma, atraiu gente e hoje é o ponto de “balada” do Safari Humano. Nas quartas há karaokê, em outros dias há funk e música brasileira e vire e mexe uma mini-festa toma conta do espaço. É difícil falar mal do Mãe Joana porque ele já proporcionou grandes alegrias, mas sinto que para a minha idade, dor no corpo e estado de espírito, ele já deu.
Valem, no entanto, algumas sugestões ao dono que num domingo vadio me deu cerveja de graça. São elas: 1) aumente o número de banheiros. Não dá pra receber 100 pessoas e só ter duas privadas; 2) tire a mesa de sinuca. Seu bar não é grande, ninguém está interessado em jogar e o espaço de dança fica prejudicado; 3) substitua a comanda que pega meus dados e os vende para terceiros pelo bom e velho “pague suas coisas na hora”. Facilita a ida e vinda, não deixa o lugar tão tumultuado, ajuda o trabalho dos garçons.
Andando mais um pouco se chega numa bifurcação importante, da Fernandes Guimarães, onde cada lado traz bares muito diferentes entre si. Quem segue o caminho dos carros e vira à esquerda cai na tríade Kalango, Botica e Porco Amigo. O primeiro desses não é muito bom, mas eu gosto mesmo assim e como lá toda semana, então é isso, atire a primeira pedra quem nunca gostou de alguém feio.
Na sequência temos o Botica, mas esse fica por último. Passando dele há o Porco Amigo, o melhor dos três. Aqui temos chopp variado e bom, batidas gostosas — ainda que os garçons tentem te empurrar a de canjica que não é melhor que a de maracujá independentemente do que eles aleguem — e um mix de porcos que sempre tem um salgado em falta. É um lugar honesto, onde é possível deixar mais de cem reais sem nem sentir e que é coringa para tudo: sair com os amigos, happy hour, almoço de família, primeiro date, encontro de término, o que for.
Voltamos então ao Botica, que fica no meio dos outros dois. O Botica é recente, com tempo de vida similar ao Xepa e público também similar. Seu principal predicado é um chorinho que tem vez ou outra regado a muito chopp Brahma quente. A comida não vale o que é cobrado e o lugar ostenta um conceito de loja de madeira, com amplas mesas e cadeiras que parecem vindas de um brechó de uma senhora aristocrática. O que mais? Os garçons são gente boa e o banheiro é bom para cagar. Juro.
Do outro lado da Fernandes Guimarães nós chegamos nos finalmentes do Safari Humano. Dois bares se destacam já que em determinado ponto da rua ela sai do trajeto do Safari Humano e entra nos domínios do norte, região que abriga o Canastra Rosé, a Liga dos Botecos e o Bar Bukowski, todos dispensáveis por motivos que você já sabe quais são.
O primeiro dos bares é o Santo Rio, um lugar de drinks iluminado por uma luz neon rosa e cujo cardápio desatualizado está no Instagram. Não tem Instagram? Désolée. A música aqui é boa, o público é eclético e os drinks são caros e ruins. Existe uma dose dupla que eu não entendo como funciona já que os drinks continuam caros e ruins mesmo assim, mas ela existe, então é importante frisar. O ambiente tem uma mesa feita de espelho, uma varandinha onde é possível ver a fiação da rua e o conceito predominante aqui é o de espelunca revitalizada. De pontos positivos, o Santo Rio tem a façanha de se importar pouco contigo, já que você entra e sai do lugar sem ser notado, o que é algo bom às vezes. Na verdade, o Santo Rio parece se importar pouco com quase tudo, inclusive com seu próprio nome, que eu só descobri na quinta vez em que pisei lá.
Ao lado temos o Macuna, antigo Colab, local bom para bate-papo, dar beijos e tomar café da manhã em férias aleatórias no meio de janeiro. O Macuna é feito de três andares, tal qual seu antecessor, cada qual com seu público próprio e sua energia. No primeiro ficam os amigos em início de noite, gente que dá preferência à cerveja e à conversa casual. No segundo fica o DJ ou a banda e lá habitam pessoas já noiadas que estão a espera de um milagre, de uma revelação ou de um “oi, sumida”. Por fim, no terceiro, fica uma laje bonitinha e casais em primeiro encontro tentando deixar menos esquisito o que nunca será.
Faltou falar do Calma. Eu não pratico o Calma, eu não frequento o Calma, o Calma tem uma energia lo-fi dos infernos. Não vá no Calma.
Quem faz o Safari Humano pela primeira vez pode ser perguntar: por onde eu devo começar? Com quem eu faço isso? Qual é o melhor desses lugares? É possível levar meus amigos, meus pais, meu namorado no Safari Humano?
A resposta disso é simples. Se você está procurando um lugar para ir com alguém, vá na Bambina. Não tem erro.