Há uns anos venho advogando que o evento que dá início ao ano letivo é menos o primeiro de janeiro (ano novo de jure) ou mesmo o Carnaval (ano novo de facto), mas sim o começo do outono. É ali, logo após as enchentes de março que fecham o verão, quando o trabalho não pode ser postergado e quando o céu nos cobre de laranja e lilás e veludo, que as pessoas se aprumam em busca das suas metas e planos e sonhos.
É nesse momento de ano útil que o botequim se torna um lugar não de comemoração, mas um divã de lamúrias, o garçom fazendo as vezes de terapeuta e analista e o álcool sendo o rivotril possível para o pobre sem médico. Pois foi num fim de tarde desses, banhado por um céu tão bonito quanto triste, que eu parei no Cantinho do Céu por nenhum motivo que passar minhas horas antes de cair na cama em lamento e saudades.
Era uma terça-feira, o pior dia da semana, quando só bebe quem já não acredita em Deus. Dito e feito, lá estava meia dúzia de gatos pingados, aqueles de quem a vida já tinha ganho todas as apostas, uns ainda engomados, outros já entregues, cada qual em sua mesa solitária, seus telefones ao lado, esperando receber uma mensagem ou ligação que os salvaria da danação eterna de não ter para quem falar “eu te amo”.
Dei alô ao Adauto e me sentei no canto de sempre, na mesa de sempre. Bebi uma, duas, três, o silêncio desconfortável partilhado entre todos ali, alheios ao mundo e ao que doía. Aos poucos meus companheiros foram saindo, um a um, incapazes de sustentar o fracasso e a decepção, até sobrarmos Adauto e eu, cada qual alimentando seus próprios demônios internos.
A noite parecia ser essa quando surgiu pela rua o Antônio — nome verdadeiro Carlos Augusto — feliz e contento, como se fosse o sujeito do Brazzino, o jogo da galera. Seu sorriso era a antítese do humor do Cantinho, mas ele não se fez de rogado.
Adauto, ele disse. Sonhei contigo ontem e tive que vir te ver.
Sonhou o quê?
Sonhei que você me pagava uma cerveja.
Não há a menor possibilidade, nem se fosse fiado.
Que isso, Adauto? Eu tinha certeza que era sonho e agora você me diz que era pesadelo?
O Adauto permaneceu impassível à piada, mas o Antônio gargalhava. Pediu uma Heineken — pagando — e se sentou na minha mesa, sem pedir, sem cerimônia, quebrando um protocolo milenar de não encher o saco de quem está quieto.
Nano, quanto tempo! Conta uma das suas.
Eu rosnava com o olhar. O Adauto trouxe a cerveja e o Antônio pediu pra ele deixar na — agora — nossa mesa.
Cruz credo, Nano. E cruz credo você também, Adauto. Que que vocês têm hoje, hein? Início da semana ainda e vocês com cara de ontem.
Eu bufei, o Adauto ignorou.
Chega, chega. Vocês tão transformando o bar num enterro. Tão mal com a família, é isso? Trabalho tá angustiante? Tomaram um pé na bunda?
O Adauto arriscou uma resposta, mas o Antônio nem deu tempo.
Olha só, vocês precisam ver o bonito da vida, o que ela nos reserva numa terça mais ou menos.
Como o quê?, eu perguntei.
Como isso, ele riu e puxou o celular do bolso. Hoje eu estava no trabalho, doido para terminar o expediente e tomar um negocinho quando recebi essa mensagem de áudio do João — nome verdadeiro omitido por motivos que serão ditos a seguir.
O Antônio abriu uma conversa, colocou o celular em cima da mesa e deu play.
“Cara, eu passei por um sanhaço no final de semana que, amigo, foi foda”, o João falava, sua voz carregada de algum constrangimento ímpar daqueles que não são fáceis de superar. Dava para ouvir uma respirada funda antes dele continuar falando tudo, por cinco minutos, sem parar.
“Meu irmão viajou. Saiu de férias, tinha um tempinho que ele estava querendo ir pra Bahia com a esposa, conseguiram uma promoção boa e foram. Enfim, isso não vem tanto ao caso. O que importa é que ele tem dois gatos e pediu para eu dar uma olhada neles enquanto ele está fora. Como eu não moro tão perto, combinei com ele de ir só nos finais de semana e durante a semana uma colega da mulher dele que mora a duas quadras ficou responsável pelo cuidado”.
“Pois bem. Acordei sábado cedo, limpei as coisas de casa, molhei as plantas, pus roupa para lavar e, quando vi, pulei o café da manhã. Isso devia ser ali em torno das 11h e eu já estava morrendo de fome, então pensei em passar no shopping para comer alguma coisa e de lá ir para o meu irmão”.
“Cheguei no shopping e a praça de alimentação já estava cheia. Rodei rodei rodei até que achei um japonês mais afastado e mais vazio. Eles estavam com uma promoção especial pro almoço e o lugar parecia direitinho. Fui ali mesmo. Tinha direito a tudo: sashimi, hot, salmão. Comi rápido, depois tomei um café e fui pro meu irmão”.
“Do shopping até a casa dele dá uns vinte minutos a pé. Não estava muito quente e eu não tinha pressa, então decidi ir a pé, o que eu sempre prefiro. Quando deu uns dez minutos de caminhada, eu senti uma pontada na barriga. A princípio não era nada urgente, só um formigamento, uma fermentação, mas eu sabia que precisaria ir ao banheiro em breve. Continuei andando, rua atrás de rua, enquanto a pontada ia aumentando e aumentando e aumentando e de repente foi como se eu tivesse tomado um soco”.
“Fiquei gelado, Antônio. Suando frio. Não tinha nada por perto, só uns botecos muito sujos e porra, eu não consigo cagar num banheiro desses. Apertei o passo, a casa do meu irmão já na esquina, eu sentindo um desespero tremendo, um pavor gigante, um medo de me cagar ali na rua mesmo”.
“Nos metros finais eu andei que nem um pinguim, única forma que eu consegui de ainda ter domínio sobre o meu esfíncter. Entrei na vila do meu irmão, passei pelas primeiras casas e cheguei. Peguei a chave para abrir a porta e nada. Outra chave, nada. Mais uma, nada. Eu tinha esquecido de colocar a chave dele no chaveiro”.
“Do lado de dentro eu ouvia os gatos miando. Eu estava desesperado. Tentei todas as chaves de novo e é claro que nenhuma delas funcionou. Só me restavam duas opções: bater na casa de alguém e pedir socorro ou tentar chegar em casa. Eu tentei chegar em casa”.
“Voltei pra rua que nem pinguim mais uma vez e fiz sinal pro primeiro táxi que passou. Entrei, fechei a porta e abri o jogo com o motorista: amigo, eu vou me cagar. Dei o endereço de casa e rezei pelo melhor”.
“O cara comprou a minha batalha e saiu furando todos os sinais que dava. Ele pegou caminhos alternativos, desviou de uma moto, cortou um ônibus e a cada dois minutos checava minha situação perguntando ‘tudo bem aí, meu camarada?’. Eu fui no limite do meu físico e do meu emocional. A cada tranco que o carro dava eu concentrava toda a energia que ainda me restava no cu para não esvair o carro do cara em merda”.
“Foram uns dez minutos até chegar em casa. Paguei 50 reais pro cara, mas daria 100 reais se eu tivesse. Quando eu passei da portaria, o meu intestino me avisou que eu tinha sessenta segundos até ele abrir as portas do inferno. A sorte me ajudou e o elevador estava no térreo. Cheguei no meu andar e eu te juro, Antônio, que eu não lembro como fiz o percurso do corredor até a porta e da porta até o banheiro. Eu só sei que eu cheguei na privada com as calças já abertas, literalmente cagando e andando. Não consegui nem fechar a porta de casa, que ficou escancarada enquanto eu berrava de dor e alívio. Foram dez minutos de um encontro com Deus, um alívio sem igual”.
“Agora o detalhe: eu fiquei tão exausto que depois de cagar eu me sentei no sofá e apaguei. Simplesmente adormeci profundamente, sem o menor constrangimento de nada. Não consigo nem te dizer se foi um desmaio ou cansaço extremo, mas eu apaguei. Com a porta aberta e tudo. Ficou assim por duas horas, até eu me levantar e me recompor de tudo o que eu tinha passado”.
“Então é isso, meu amigo. Não coma japonês barato e não faça caminhadas depois de almoços suspeitos. Pode ser perigoso”.
O Antônio olhou pra gente, os olhos úmidos de tanto rir. A história tinha cumprido seu papel e eu fiquei mais leve. O Adauto, no entanto, continuou impassível.
De quem é o áudio?, ele perguntou.
Do João, o Antônio respondeu.
Que João? O João João? Flamenguista? Que vem aqui de vez em quando?
Isso, ele mesmo.
Não aconteceu isso não, é mentira.
Como assim?
É mentira, estou te dizendo.
Como você sabe?
Olha, eu não ia falar nada porque não é da minha conta o que vocês fazem fora daqui e porque no fundo eu não gosto de nenhum de vocês, só aturo porque é meu trabalho. Por mim, nem aqui vocês ficavam. Mas isso daí que ele contou, ó, mentira. Não aconteceu nada disso. Não teve nada de casa do irmão, de japonês, de pinguim. O que aconteceu foi ali, no Galeto, aqui em frente.
E como você sabe?
Porque eu sou chato, mas converso com todo mundo e todo mundo gosta de me contar histórias. E o João foi a história da semana passada do Galeto.
Tá bom. Então o que houve?
O Adauto olhou pro Antônio e pra mim grato da atenção. Curtiu nossa curiosidade por um tempinho até que começou a falar.
Não gosto de ser fofoqueiro, mas enfim, vocês que estão pedindo e também não aconteceu aqui, então não é como se fosse algo que tivesse sob minha responsabilidade. O que aconteceu é problema dele e todo mundo já sabe também.
Todo mundo?
Os garçons da região. O pessoal fala bastante.
Pode falar, Adauto.
Enfim, o que aconteceu foi o seguinte: o João foi quinta passada no Galeto com uns amigos. E por amigos eu digo amigos mesmo, não vocês. Era gente da confiança dele, parece que era reencontro de sei lá quantos anos de formado, uma coisa dessas. Ficaram numa mesona ali fora, pedindo chopp, linguiça e pão de alho a noite inteira. Vocês tão ficando mais cascudos e sabem que chopp, linguiça e pão de alho não são coisas para principante. É comida de vagabundo, não é para qualquer um.
Pois bem, eles ficaram repetindo o ciclo sem se preocupar com o dia seguinte. O que eu sei é que em dado momento o João se levantou da mesa e correu para o banheiro, como que no susto. Imagino que tenha levado um soco do gorila.
O quê?, o Antônio perguntou.
Soco do gorila. Não sabe o que é soco do gorila?
Não.
É aquela pontada na barriga que você sente quando tá apertado para cagar. Mas não são gases ou cólicas, é algo mais forte, um soco mesmo. É um aviso do seu corpo de que a merda vai sair, queira você ou não. É um sobreaviso, algo como “você tem sessenta segundos”.
Então foi isso que aconteceu? Ele foi cagar no banheiro do Galeto? A história que ele contou foi muito melhor, Adauto.
Eu não terminei. Ele voltou pra mesa uns minutos depois, rosto lívido, em paz. Acontece que pouco depois dele voltar, ele teve que sair de novo correndo para o banheiro. Quem viu disse que não entendeu nada já que ele tinha acabado de ir.
E aí?
E aí que ele se cagou. O corpo não conseguiu esperar o deslocamento e a espera. Se cagou ali no banheiro mesmo, tão perto da privada e tão longe da dignidade.
É sério?
Claro. O lugar ficou empesteado. Tiveram que comprar água sanitária no dia seguinte pra limpar o chão do banheiro.
E o João?
Saiu sem pagar. Deixou a dolorosa pros amigos, fingiu que não era com ele e, quando chegou em casa, contou que passou mal.
E isso tudo o garçom do Galeto te contou?
Ele e outras pessoas. A história tá circulando. Se vocês forem em qualquer bar das redondezas hoje e perguntar alguma coisa sobre caganeira, vão ouvir o caso.
O Antônio continuou duvidando e decidiu ligar pro João. Botou o telefone no viva voz.
João, seguinte: estou no Cantinho e soube que sua história da casa do seu irmão, do japonês e do pinguim é mentira e que na verdade você passou mal no Galeto. E aí?
O João demorou alguns segundos até confirmar a versão do Adauto.
A gargalhada foi geral, o tempo ruim de antes completamente afastado do Cantinho do Céu, agora fazendo jus ao nome que ostenta. Foram alguns minutos de avacalhação generalizada até que todos se acalmassem, inclusive o João, e nós pedíssemos mais detalhes da história. Ele então contou que esperou minutos dentro do banheiro esperando alguém sair do box e que a pessoa não saía, não saía, ela não saía, não saía, ele desesperado e não saía até que, enfim, saiu. Falou também de um velho bêbado que entrou no banheiro, deu duas fungadas e sentenciou sua humilhação gritando “mas que cheiro de merda!”.
Como você está?, o Antônio perguntou.
Me recuperando. O pior de tudo foi ligar para a minha mulher que está viajando.
Por quê?
Eram meia noite quando eu liguei, tinha acabado de chegar em casa. Ela atendeu assustada, achou que era alguma emergência, um acidente. Não deixava de ser, né? Mas enfim, ela pensou que fosse risco de vida. Daí eu disse que precisava falar com ela algo muito sério e ela ficou ensimesmada, achou que era traição, algo do tipo. Me perguntou o que tinha acontecido.
E você?
Eu falei a verdade, não sou de mentir pra ela. Eu falei: amor… eu me caguei.